Accountability societária
1. O que é accountability
Quando se fala em accountability, logo se compõe um mosaico de conceitos que envolvem monitoração das atividades dos governantes pela sociedade civil1, controle social do poder público, transparência dos atos da administração pública e possibilidade de sanção, entre os principais. Para além, é muito comum empregar o termo ao se enfatizar a atividade de admistração pública no que tange à prestação de contas. Porém, já existe certo consenso que não se trata somente desse aspecto, mas também da sensibilidade das autoridades públicas em relação ao que os cidadãos pensam e desejam – sensibilidade esta que só pode ser ajustada e refinada mediante canais de diálogo entre poder público e sociedade civil.
No Brasil, especialmente após 1988 em que contamos com a aprovação da “Constituição Cidadã” que prevê instrumentos de participação, abriu-se um espaço político para práticas democráticas que aproximam o Estado do cidadão e há um esforço de comunicação de anseios da população para o Estado.
“A delegação de autoridade para os cidadãos tem o potencial de expandir accountability no nível local à medida que estes contribuem para as decisões sobre formulação de políticas públicas e trabalham no interior de comitês de monitoramento, que constituem terceiras-partes na relação entre Estado e sociedade”. (WAMPLER, 2005)
Nesse contexto vêm emergindo organizações sociais tais quais fóruns, ONGs, pastorais, etc. Esses organismos sociais muitas vezes é que têm passado a mediar a relação cidadão comum – Estado, tendo como consequência o repensar tanto dos partidos políticos (responsáveis anteriores por essa mediação), como da mídia e como também das próprias organizações da sociedade civil, quanto ao seu papel e, por que não, sua accountability.
Temos então configurada a necessidade de uma accountability societária; o que é natural dado que enxergam-se falhas de representação no Estado, vícios nas organizações partidárias, cabe averiguar se o caminho que vem sendo tomado – aglutinação em organizações sociais – consegue ou não superar as falhas de representatividade e contar com legitimidade na mediação a que se propõe. Ou seja, de acordo com Lavalle e Castello (2008)
“cabe perguntar pela qualidade ou representatividade dessa representação, pelos mecanismos que a tornam legítima não apenas em relação ao poder público, mas também em relação aos representados ou beneficiários em nome dos quais se atua ou se negocia.”.
Vale ressaltar que o conceito de accountability conta com alguns consensos mas também com bastante dissenso. Mainwaring, por exemplo, menciona responsividade e responsabilidade de funcionários públicos como um dos traços da accountability, bem como defende que deve contar com alguma forma de sanção – não necessariamente no plano jurídico (MAINWARING, 2003). Já O’Donnell defende que os mecanismos de accountability baseiam-se somente em questões de responsividade sem que haja possibilidade de sanção (O’DONELL, 2003). Neste texto, parte-se da concordância com Mainwaring de que a accountability engloba em si o binômio controle-sanção.
2. A dupla face da accountability societária
Com a evolução da democracia em diversos países, a forma de participação política foi ampliada e hoje a sociedade civil organizada possui um papel democrático mais eficiente, dada a multiplicação de interfaces de contato entre ela e o Estado, resultando em diferentes modalidades de accountability societal. No estudo conduzido por Lavalle e Castello (2008) tanto na Cidade do México como em São Paulo, mais de dois terços das organizações civis entendiam que representavam seus beneficiários, mas com justificativas bastante diversas, tais como: eleitoral, de filiação, de identidade, de proximidade, de serviços e de intermediação.
No referido estudo (LAVALLE E CASTELLO, 2008) foi feita a análise de 229 organizações paulistanas e de 196 mexicanas, que foram classificadas conforme critérios objetivos de dois tipos: (i) a relação com seus beneficiários e (ii) o perfil das atividades normalmente realizadas. Resultaram dessa classificação quatro grandes grupos: (i) associações de base (associações de bairro, associações comunitárias e comitês de vizinhos), (ii) organizações orientadas tematicamente (ONGs e partorais), (iii) entidades de coordenação (articuladoras e fóruns) e (iv) entidades assistenciais. Essas entidades foram analisadas considerando a dupla face da accountability societária, a saber, (i) a relação entre representado e representante e (ii) relação entre o representante e o lócus da representação.
Das entidades pesquisadas, 73% das organizações brasileiras se consideram representantes de seus beneficiários enquanto essa marca cai para 58% no México. Notou-se uma ênfase na invocação da representação presuntiva por parte dessas entidades, que deram justificativas que foram agrupadas em: (i) eleitoral, (ii) de identidade, (iii) de filiação, (iv) de serviços, (v) de proximidade e (vi) de intermediação. A tabela 1 a seguir apresenta um resumo das análises feitas pelo estudo de Lavalle e Castello (2008) a partir dos argumentos acima apresentados:
Tabela 1: Accountability societal a partir dos argumentos de representação
argumento | carcterística | função desempe- nhada | controle e sanção | em São Paulo | na Cidade do México | relação entre representado e representante | relação entre o representante e o lócus da representação | Observações |
eleitoral* | Conta com existência de mecanismos de eleição de líderes ou dirigentes. | Não contempla ou explicita. | Oferecem mecanismo. | 4% das organizações contam com este argumento | 15% das organizações contam com este argumento | Responde satisfatoriamente a exigências democráticas. | Lócus Implícito → diversos órgãos do poder público. Relação deste com representante é pouco clara. | A grande expressão na Cidade do México neste argumento atribui-se a efeito da Lei de Participação Cidadã. |
de identidade | Conta com coincidência substantiva plena entre representante e representado devido a características existenciais (etnia, gêreno, etc) | Pressupõe-se evidente pela identidade substantiva. | Não oferecem mecanismo pois a identidade já bastaria. | 5% das organizações contam com este argumento | 4% das organizações contam com este argumento | Não há expediente de autorização. | Lócus Implícito. Relação deste com representante é pouco clara, sem especificação. | Principal argumento das ONGs da Cidade do México. |
de filiação* | A afiliação de membros é a evidência de legitimidade que entafiza ao mesmo tempo a gênese da organização de dos interesses que representa. | Interesses são delimitados no ata da sua fundação. | Oferecem mescanismo (direito de saída ou outros). | 7% das organizações contam com este argumento | 5% das organizações contam com este argumento | identidade gerada no processo de criação da organização | Lócus é imprescindível → maior parte das vezes poder público, mas também instâncias privadas. | É o principal argumento das entidades de coordenação. |
de serviços** | Os benefícios concedidos aos beneficiários são entendidos como fonte de legitimidade, enfase na melhoria da vida das pessoas mediante a prestação de um serviço. | Bem definida, já que se trata de uma prestação de serviço específico. | Não oferecem mecanismo pois os beneficiários são vistos como dependentes, receptores. | 23% das organizações contam com este argumento | 21% das organizações contam com este argumento | É de índole unilateral e se calca na concessão de benefício. | Lócus é omitido por completo. Relação deste com representante, portanto, inexiste. | É um dos três argumentos mais utilizados em ambas cidades, e tem a “eficácia” como peça-chave do argumento. |
de proximidade** | Ênfase na qualidade da relação com beneficiários devido à contiguidade e horizontalidade estabelecidos. | Não especifica. | Proximidade favorece formas de controle e sanção, mas pode permiir fomas frágeis. | 27% das organizações contam com este argumento | 16% das organizações contam com este argumento | Participação e proximidade física favorecem a relação. | Lócus é sugerido. Relação deste com representante é pouco clara, sem especificação. | É dos argumentos mais utilizados em São Paulo. E representa crítica implícita à representação política eleitoral. |
de intermediação** | A legitimidade da representação não reside na relação com o beneficiário, mas no lócus da representação. | Há especificação das funções do represntante no lócus. | Não há indicio de controle social sobre o representante. | 31% das organizações contam com este argumento | 13% das organizações contam com este argumento | É difusa e não conta com expediente de autorização. | Lócus é determinante. Relação deste com representante é clara e definida. | É o argumento mais utilizado em São Paulo. Conseguem estabelece diálogo com poder público e influenciar decisões. |
* representação autorizada | ||||||||
** representação presuntiva |
3. Contribuições das organizações civis
A partir do estudos de Lavalle e Castello (2008) é possível extrair três requisitos mínimos que compatibilizam a representação das organizações civis com princípios básicos democráticos:
(i) não se deve omitir o lócus da representação (presuntiva);
(ii) deve haver dispositivos de aproximação física e simbólica entre organizações e beneficiários (possibilitando controle e sanção);
(iii) haver incidência do representante no lócus de representação.
Miguel (2003) discute acerca da representação e afirma que seu sentido atual foge do que poderia ser entendido por governo representativo e vai além ao indicar três caminhos para recuperação da democracia representativa:
(i) cuidado na formação da agenda;
(ii) acesso aos meios de comunicação de massa;
(iii) acesso às esferas de produção de interesses coletivos.
Isto posto, é preciso que haja uma meta-reflexão constante das organizações civis no que tange às criticas e aprimoramentos necessários à democracia que se desenvolve. A democracia participativa não escapa à representação em alguma escala e recorre à representação presuntiva por parte das organizações civis, muitas vezes pouco claras na sua institucionalidade em relação a seus mecanismos de nomeação, eleição, filiação, entre outros. Esse terreno ainda em construção, pouco explorado e por vezes nebuloso tem a vantagem de deixar florescer formas de representação social que não precisam enquadrar-se num modelo pré-determinado. Isso se traduz numa accountability diversa, que precisa ser respeitada e valorizada enquanto espaço para surgimento de possíveis inovações democráticas. No entanto, essa postura não deve incorrer na relativização da democracia ao ponto de comprometê-la. Para isso as organizações podem contribuir para uma cultura de accountability societal que fortaleça a democracia ao:
– contarem com escopo definido (isso limita a possibilidade de firmar acordos para além daquilo que é premissa de discussão na sua base, por exemplo);
– preocuparem-se com a construção coletiva da agenda de representação (ao prever momentos para definição de pautas, discussão de decisões e correção de rumo caso necessário, por exemplo);
– prever instrumentos que viabilizem controle e sanção (reuniões com atas em que se registre quais posições devem ser tomadas pelos representantes, destituição de indicação para representação junto a órgãos governamentais caso se fuja do previamente estabelecido, por exemplo).
Por fim, o papel de mediação que as organizações civis desempenham muitas vezes não se dá apenas com o Estado mas também com a mídia, significando ponte de diálogo para os cidadãos, que não têm voz perante o Estado nem perante os meios de comunicação de massa e que precisam ser representados para serem ouvidos e terem suas posições e anseios considerados. Portanto, é fundamental para as organizações sociais terem clara sua responsabilidade nesse processo e serem transparentes na sua atuação.
4. Referências bibliográficas
LAVALLE, Adrian Gurza e CASTELLO, Graziela. “Sociedade Civil. Representação e a dupla face da accountability: Cidade do México e São Paulo.” In: Caderno CRH, Salvador, vol. 21, n. 52, Abr.
2008. Disponível em: http://www.cadernocrh.ufba.br/viewarticle.php?id=542.
MAINWARING, Scott. “Introduction: democratic accountability in Latin America.” In: Mainwarning, Scott. Welna, Christopher. Democratic accountability in Latin America. New York: Oxford University Press, 2003. p. 3-33.
MIGUEL, L. F. (2003). “Representação Política em 3-D: elementos para uma teoria da representação política.” In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 18, n.51, 2003. p. 123-193.
O’DONNELL, Guillermo. “Horizontal Accountability: The Legal Institutionalization of Mistrust .” In: Mainwarning, Scott. Welna, Christopher. Democratic accountability in Latin America. New York: Oxford University Press, 2003.
WAMPLER, Brian. “Expandindo Accountability através de instituições participativas? Ativistas e reformistas nas municipalidades brasileiras.” In: Coelho, Denílson Bandeira, Catia Lubambo e Marcus André Melo. Desenho Institucional e Participação Política. Experiências no Brasil Contemporâneo. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.