Ermínia Maricato deixa órgão da ONU
A professora Ermínia Maricato, da USP, decidiu deixar o Board of Global Research on Human Settlements, da Organização das Nações Unidas (ONU). Em carta dirigida a Anna K. Tibaijuka, explica suas razões:
“Antes de mais nada, agradeço a distinção que me foi conferida por V.S ao convidar-me para fazer parte do Advisory Board of the Global Research Network on Human Settlements (HS-Net) em março de 2009. Fazer parte de uma equipe altamente qualificada, cujos componentes têm origem em várias localidades do mundo, e cuja finalidade é colaborar com a missão do United Nations Human Settlements Programme, é motivo indiscutível de satisfação pessoal.
Como participante deste conselho eu iniciei a tarefa de analisar a pré-proposta do 2011 Global Report on Human Settlements e desenvolver minhas contribuições, as quais pretendo enviar no prazo solicitado.
Entretanto, alguns acontecimentos inesperados me levam a, respeitosamente, por meio desta, apresentar meu pedido de desligamento deste conselho pelos motivos que se seguem.
Fui consultada por alguns colegas e instituições de pesquisa relacionadas com assentamentos humanos sobre minha disponibilidade para disputar à candidatura ao prêmio da Cities Lecture Award do Habitat da ONU, a ser concedido no Fórum Urbano Mundial que acontecerá em março de 2010 no Rio de Janeiro. Eu aceitei o honroso convite para concorrer à indicação, tendo plena consciência da dificuldade de ser apontada para o prêmio disputado por tantos pesquisadores e profissionais destacados em todo o mundo.
O passo seguinte dos acontecimentos foi uma mensagem do Secretariado da HS-Net, encaminhada pelo Sr. Edlam Yemeru, informando-me que estava recebendo inúmeros apoios a minha indicação, mas que, como o conselho participa da seleção do prêmio, ele estava informando os signatários de que eu não poderia concorrer no próximo Fórum Urbano Mundial em 2010. Eventualmente eu teria uma oportunidade em 2012, caso não estivesse compondo o conselho.
Entendi e entendo que as instituições que me apóiam não visam apenas homenagear a minha pessoa, mas principalmente destacar, em um fórum internacional, algumas idéias que muitos de nós vimos defendendo e que quero aqui resumir muito rapidamente.
A 2ª Conferência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos- HABITAT II, que teve lugar na cidade de Istambul em 1996, mudou o paradigma urbano. Desenhos sofisticados e futuristas sobre as cidades não resistiram diante das denúncias e evidências científicas sobre a “urbanização da pobreza”. O Programa UN-HABITAT e os Relatórios Globais sobre Assentamentos Humanos certamente tiveram um papel importante na disseminação desse novo paradigma durante os anos que se seguiram.
Em setembro de 2000, 189 chefes de governo do mundo todo, reunidos na “Cúpula do Milênio” se comprometeram com as Metas de Desenvolvimento do Milênio, traçadas pela Organização das Nações Unidas. A Declaração do Milênio fixou como prioridade eliminar a pobreza e fome no planeta até 2015, definindo metas e indicadores de acompanhamento.
É preciso reconhecer que tivemos avanços especialmente no reconhecimento sobre a realidade das cidades. Como tema, as cidades entraram na agenda política mundial bem como o poder local ganhou maior importância. A participação comunitária ampliou-se fortemente. Em muitos países vivemos uma verdadeira “febre participativa” dos pobres, auxiliados por ONGs, no debate de seus problemas próximos. Participação e erradicação da pobreza têm sido palavras de ordem de muitas ONGs e inclusive de muitos governos.
No entanto, apesar de tantos avanços e conquistas, as cidades do mundo não melhoraram. Ao contrário, na maior parte dos países pobres a população moradora de favelas aumentou, o transporte coletivo piorou, as epidemias se multiplicaram e não por coincidência (como por vezes querem fazer crer alguns colegas), aumentou também o desemprego e a violência.
Mesmo nos países desenvolvidos a chamada “população de rua”, praticamente imperceptível nos tempos do Welfare State tornou-se um problema relevante. Talvez mais do que nossos livros, pesquisas e relatórios, o cinema está revelando a face mais cruel dessa cidade onde a solidariedade e a infância está em decadência (1). Trata-se da ausência da esperança no futuro especialmente entre os jovens cujos valores são cada vez mais determinados pelo fetiche do consumo. De fato, os imperativos de um modelo de consumo que é universal, e que inclui a arquitetura do espetáculo, nos países do núcleo hegemônico penetram as mentes e corações de grande parte da humanidade, que se mantém na pobreza, em condição pré-moderna sem acesso aos direitos elementares como água, esgoto, moradia, saúde, mas convivendo frequentemente com gadgets eletrônicos. O poder do mercado é avassalador.
Não há novidade nestas linhas. Os relatórios globais já trataram dessa situação de injustiça social relacionada não apenas ao território, mas ao gênero, à etnia, ao meio ambiente, à idade, etc. Mas nada disso acontece por acaso. E dentre as muitas causas é preciso apontar claramente o papel da concentração de poder, da expansão desregulada dos mercados e das receitas neo-liberais no aprofundamento dessa tragédia urbana que contou com a colaboração de diversas agencias internacionais, por mais de duas décadas. O desprestígio do Estado e das políticas sociais, os ajustes fiscais, os juros exorbitantes de dívidas impagáveis, a regra de fogo do “cost recovery” aplicada aos serviços públicos essenciais, as privatizações, as desregulamentações, tiveram um impacto profundo na cena urbana. A terra, seja urbana ou rural assume um papel revisitado na globalização determinando a desterritorialização de camponeses e indígenas e o aumento da segregação urbana, dificultando até mesmo os poderes locais de implementar políticas sociais de habitação.
A matriz de mobilidade baseada no automóvel (incluindo aí a produção, refino e distribuição do combustível poluidor) desafia toda e qualquer proposta ambientalmente e socialmente racional e se amplia internacionalmente com subsídios polpudos após a eclosão da crise de setembro de 2008. A urgência revelada pelo IPCC 2007 exige respostas mais incisivas que precisam superar a lista, embora considerável, das “best practices” pontuais. É difícil, mas é preciso separar a retórica e o marketing urbano daquilo que realmente conta.
Decidi deixar o prestigiado Advisory Board of the Global Research Network on Human Settlements para manter minha candidatura ao UN-HABITAT Cities Lecture Award porque essa é uma forma de me juntar às vozes, ainda fracas, de muitos profissionais, pesquisadores e organizações em todo o mundo, inconformados com as frágeis respostas aos problemas já apontados em tantos documentos. Embora saiba que minha chance de receber esse prêmio não seja grande, o inesperado apoio que tenho recebido não me permite negá-lo. É tão honroso participar do Conselho da HS-Net quanto fazer parte da reconstrução de uma sociedade civil que precisa sair da letargia em que se encontra diante da tragédia urbana mundial.
Respeitosamente,
Erminia Maricato
Professora Titular, Universidade de São Paulo.”
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16192
Enfim, ela deixa o cargo para concorrer ao prêmio, pois o peso de seu nome e de suas ideias farão mais diferença nessa premiação do que a sua atuação na comissão da ONU. Eu não conheço a dinâmica de ambos espaços para de fato opinar se a decisão dela seria a mais acertada. Mas entendo que, mediante uma situação de escolha, ela optou pela possibilidade de um prêmio que talvez tenha mais impacto social.
O que é possívelfazer é inferir o que a tenha levado a tal decisão: o burocracia da ONU não permitiria uma atuação militante da real defesa de certos direitos humanos? Ou a autonomia dos Estados? Ou melhor, a autonomia das empresas transnacionais, que não respeitam as fronterias dos Estados? Ou o jogo de poder é demais para o fígado dela? Ou simplesmente, deu-se conta de que transformação real, que parece ser o que almeja, vem da base e não do topo.
Independentemente disso, é preciso ter coragem para sair e sabedoria para sair no momento certo – talvez seja isso que tenha ocorrido…