“O que é mais importante: explicar a realidade ou convencer?”
Recomendação especial para o dia de hoje: assistam ao filme Cronicamente Inviável de Sérgio Bianchi.
Na mesa de jantar da segunda cena temos a rica hipócrita Maria Alice; Carlos, o rico consciente e concordante com seu papel dominador; Luis, o rico escroto dono do restaurante(ambientação de várias cenas) e a gerente do mesmo restaurante que ascendeu socialmente e reproduz (tal qual o capataz) o papel do opressor.
BA, por Alfredo: Perfeita forma de dominação autoritária: a felicidade! Ainda se insiste em criticar a Bahia, nada mais é que a inveja da genialidade do projeto – enquanto o resto do mundo se esforça para dominar as massas pelo capitalismo, socialismo, guerra, revolução ou consumo… Mas e quem não quer ser feliz? É obrigado a aderir a essa “ficção barata da felicidade moribunda, podre, mijada; essa imagem aprimorada da brasilidade enlatada que é boa para todo mundo”?
Segue-se um programa que parece estar discutindo a identidade nacional a partir da obra Brasil Ilegal* do antropólogo Alfredo Bur. Tal debate conta com três outros esteriótipos: 1) a branca sulista à direita, 2) o indígena à esquerda e 3) o antropólogo conciliador ao centro.
*Detalhe pitoresco, que pode ser devaneio meu, é o título da obra de Alfredo (Brasil Ilegal) ser um trocadilho com o programa Brasil Legal, da Regina Casé em que ela viajava o Brasil, tal qual Alfredo o faz – cada qual de modo e acidez bem diferente.
1) é apresentada primeira, à direita do espectador, ex-secretária de finanças do Banco Central, que acha que a parte rica carrega o restante do país nas costas e pensa que se ela trabalha 16h por dia não tem porque ouvir essa discussão sobre formas de dominação, essa divagação é perda de tempo, porque só dá para divagar se alguém trabalhar para segurar o país. Para ela “trabalho e desenvolvimento são os únicos caminhos para realmente se chegar à liberdade democrática” e se
“se todos tiverem trabalho, os problemas com a liberdade ficam bem mais simples – a liberdade de consumo foi a única que deu certo até hoje”.
Sul, por Alfredo: Perfeita forma de dominação autoritária: o trabalho! A crítica ao projeto sulista é pura inveja – enquanto o resto da país esforçou-se para escrevizar índios e negro, eles fizeram o suficiente para fgarantir a exploração da forma já conhecida: arrancaram a vegetação nativa, exterminaram os índios e trouxeram seus próprios escravos (imigrantes).
Segue outra cena de um protesto dos Sem-Terra, um tanto mal articulado, pois interditam a estrada da fazenda errrada. As lideranças parece não se entender. E o povo, já não mais seguindo o patrão, continua sua cultura seguidora, e segue agora os líderes do movimento, mantendo a mesma parca capacidade crítica…
RJ, por Alfredo: Um índio é espancado por policiais na praia e a surra é acompanhada pela reflexão imovível dele já que “os índios já exerciam a violência entre eles. Violência sempre existiu. Mas eles organizavam a violência e até a guerra de forma ritual. Se bem que o jeito de fazer as coisas hj em dia não deixa de ser ritual: o ritual de bater sistematicamente no mais fraco. Interessante que nós compreendemos a violência dos índios cm facilidade… será que eles compreendem a nossa? De exterminá-los sistematicamente?”
2) á apresentado o representante do núcleo de consciência indígena da USP que diz ser o livro “mais uma tentativa desesperada de manter essa (necessidade da) superioridade pois despreza o extermínio sistemático dos povos indígenas; não esquecendo que foi em cima desse extermínio que surgiu essa pretensa união da nação. Talvez seja por isso que nós índios que compreendemos esse espírito do extermínio temos o papel de tentar sobreviver para tentar gerar a identidade nacional.”
Cíclico, o filme retorna ao conflito sem-terra e fazendeiro e, cinicamente, a cena fecha em “tá vendo, concordaram, tá vendo como não é difícil ficar do mesmo lado” expondo novamente a vocação brasileira para a prudente cordialidade. Tal resolução de conflitos, agora sutil e étnica consolida-se na prórpia personagem de Amanda, gerente do restaurante, mistura de índio, negro, branco e “derivados” (?!).
Mas a parte que aborda a hitória dae Josilene, empregada doméstica de Maria Alice e Carlos, era sua amiguinha de infância, cujos pais, também trabalhavam para seus pais. Precisa dizer mais? E tem gente que acha que as desigualdades nao se acumulam historicamente e que cada um depende só de sua força de vontade para “vencer na vida”…
A cena do carnaval é simbólica, Maria Alice no camarote e Josilene desfilando: “para que serve então, depois de adulta, se fantasiar de ouro e prata para desfilar em uma rua fechada, quase como um curral, ladeada por camarotes onde continuam a estar seus senhores? O que resta para Josilene são seus segundos de glória… o suficiente para sentir e se convencer que a dominação é importante. Não porque goste de ser dominada”… mas pela esperança de alguma dia poder ser de alguma forma senhor, sendo suportável a dominação. Aliás, Josilene tem fim incerto no filme.
RJ,por Alfredo: “Explorar a miséria como atração turística é no mínimo perigos. Assim a miséria ao invés de ser um problema, passa a ser desejável”… “Hã, estamos evoluindo: da seleção natural da rua para a seleção do mercado” Ele diz isso ao ver os meninos de rua apresentando-se na timbalada. Eu vejo isso nos milhares de meninos pobre sonhando em ser jogador de futebol. E a educação? Queria muito saber da educação, para além das promessas de campanha e dos horários eleitorais…
Adam, que foi do Paraná para o Rio, de boa instrução e insubordinado, passa a trabalhar para Amanda e Luis no restaurante e reflete, na volta do trabalho, no ônibus lotado: “Num dá para ter uma vida decente nesse aperto – só se acreditar muito no trabalho. Mas nem assim… porque se vc é obrigado a ficar 3h/ia nesse enrosco para ir e voltar do trabalho num dá para acreditar que sua vida é decente. Mas tanto faz… porque de qualquer jeito vc tem que fingir que não entende porque se fode. Fingir que não entende todo mundo finge, senão teríamos uma revolução. Pode ser que o mais importante então seja essa sensação coletiva de sofrimento – como se o importante fosse ser vítima a qualquer preço. O interessante é que todo mundo se fode junto – mas na hora de reclamar a coisa fica individual.”
3) Coordenador do movimento Viva Rio, descreve o brasileiro como um homem cordial e atribui à nossa miscigenção como o diferencial do Brasil, fonte da nossa força e aglomerante da identidade nacional. Vê o Brasil como uma profussão de raças, situação muito promissora e futurística. Fica subliminar a nossa suposta convivência não-conflituosa e não-opressiva.
Centro-Oeste, por Alfredo: “É a única coisa que os homens sabem fazer e fazem bem: destruir. Algum lugar preservado da ditadura da felicidade! E se formos bons cristãos, nem Deus vai interferir.” “A vida do homem é fundada sobre o desastre, sobre a destruição de algo que não foi ele prórpio que construiu. Mas o homem não destroi porque é mau. Ele destroi porque não consegue fazer de outro jeito. Ele é tão adaptado à destruição que se ele destruísse sem respeitar nenhuma regra, acabaria se auto-aniquilando. E no fundo, nem as regras conseguem conter a destruição. Elas só servem para transformar a destruição em espetáculo para aqueles que detêm o poder. Poder que nada mais é que o prazer que sente quem pode dizer o que deve ser destruído. O prazer de dizer que essa destruição funciona e que é construtiva.”
Por fim, o professor Alfredo, colega de profissão da finada Ruth Cardoso, “completa” seu orçamento transportando órgãos ilegais (motivo real de suas viagens pelo país), já que “escrever livros não enche o bolso de ninguém”. Cena coroada por mais um atropelamento de uma criança de rua, els próprias culpadas de seus destinos – nunca os possuidores de automóveis.
Minhas críticas são pontuais (e talvez por ignorância) mas a reflexão sobre “Deus é brasileiro” e a oração da moradora de rua achei partes dispensáveis do filme; já o trecho da casa noturna com sexo explícito achei que poderia ser melhor trabalhada em termos conceituais e, por fim, a história (ou possibilidades de histórias) de Amanda que não me ficaram claras no roteiro.
Com muito simbolismo massarocado com realidade, não se sabe se se trata de um protesto ou uma sátira, mas de uma leitura cínica a partir de um antropólogo rabugento mas indiferente, somente observador da realidade qu assume sua conveniência: “Melhor só registrar os fatos e deixar a interpretação para depois. Assim pelo menos posso fingir cada vez de uma forma. Cada vez posso arrumar a realidade de um jeito, de acordo com o poder do momento.”
Paralelo interessante é feito por Fernando de Barros e Silva (em http://www.osfilmes.com.br/cronicamente/materias/folha9.htm), lembrando que esse filme é de 2000: Assim como Glauber, em “Terra em Transe”, fez de Paulo Martins (Jardel Filho) o protótipo do intelectual dos anos 60, Alfredo é o representante da “intelligentsia” na era FHC.
O ponto ótimo, ao meu ver, é quando o empregado Adam literalmente fudido e mal pago pelo patrão Luis vai à desforra e conclui: “patrão sacana tem que viver com medo” em resposta à linha do patrão de … ou melhor, da mãe do patrão, que dizia que “a gente sempre deve dar uma segunda chance”, pois “despedir não tem graça, o divertido é humilhar”.
A resposta ao sistema nosso repressor de cada dia é dada coletivamente e por isso, não podendo ser atribuída a ninguém especificamente: terrorismo social. “É muito explícita essa cena, não seria melhor fazer de uma forma mais adapatada à realidade?”
Para Alfredo, “a realidade não interessa às pessoas. Não adianta mostrar nada de real para elas. Elas vão encarar sempre como ficção.”
Será?!
1. Boa sacada sua sobre o trocadilho do “Brasil Ilegal”…
[Agora ao invés de viajar pelo Brasil, Regina Casé traz o “Brasil” que quer mostrar como “legal”, “maneiro” para dentro do “Esquenta”]
2. Mas discordo ser desnecessário o final com a oração da sem-teto “abençoando” seu filho…
A felicidade ou esperança que traz a religião cristã é só mais um exemplo das formas de dominação apresentadas pelo filme, não mais encenada por ator ou analisada por personagem…é o registro, apenas a documentação, como disse que o faria Alfredo.
“porque de qualquer jeito vc tem que fingir que não entende porque se fode. Fingir que não entende todo mundo finge, senão teríamos uma revolução.”