A experiência deste Hackathon na Câmara dos Deputados
A ideia de entrar neste Hackathon nem é para ganhar e isto pode parecer estranho à primeira leitura – mas é verdade. A esta hora da madrugada (a poucas horas da apresentação do projeto) estamos com só 1 gráfico de 6 pronto e, bem, não ganharemos… hehehe.
Então para quê estou aqui? Para que estamos aqui eu, Diego e Andrés?
Bem, o nosso projeto Gênero & Participação tem como objetivo investigar a participação de homens e mulheres na casa legislativa, qual é a divisão proporcional e absoluta e se existe um certo perfil de temáticas que é mais de afeição de mulheres do que de homens, ou vice-versa.
Nessa história precisamos de muitos dados e entre os principais figuram as biografias e as proposições de parlamentares. Aí a ideia é verificar percentuais de mulheres e homens ao longo da história tanto no total da casa como por partidos, e ainda poder comparar partidos nesse quesito dado um ano específico. Para além de mapear e explicitar visualmente a parca participação feminina seria interessante averiguar se há pautas que são mais comuns a um gênero do que a outro. Para tanto, precisamos do ID parlamentar (forma com que o banco de dados identifca um(a) parlamentar) e de características das proposições, em especial suas palavras-chaves. Com estas palavras, e entendendo sua lógica de atribuição, queríamos identificar macro-temáticas e verificar se havia algum tipo de divisão de gênero nas proposições. As ideias são lindas e os dados também, mas às vezes eles não se encaixam tão bem, nem tão rápido…
Nossas primeiras demandas de dados (ainda na terça-feira, 1º dia da maratona) foram: biografias, proposições e taxonomia das palavras de indexação. Nossa primeira empreitada foi tentar entender a indexação, aí o Daniel* nos levou à Ana Paula* que explicou-nos um pouco do processo de indexação: uma proposição entra no sistema pela Secretaria Geral da Mesa (SGM) e depois recebe um sem-limite número de palavras. Existe um “dicionário” de palavras para auxiliar os servidores chamado Tesauro que estabelece quais são as palavras autorizadas, as sinonímias e as hierarquias. Para entender o que uma palavra autorizada significa, imagine uma proposição que queria legislar sobre nossos emails. Essa proposição não pode receber a palavra “email”, mas deve receber a expressão “correio eletrônico”. Ou seja, a lista de palavras autorizadas serve para uniformizar a linguagem e é mutável com o tempo. Daí fomos ao Centro de Documentação e Informação (CEDI) e conversamos com a Katiúcia* que nos explicou a estrutura do órgão e também nos mostrou como usuária o Tesauro o SilegDep.
O Tesauro foi uma das bases mais “fáceis” de conseguir (chegou na quarta-feira, 2º dia da maratona) mas descobrimos que ela não nos serve… sinceramente a achamos insuficiente/pobre. Os relacionamentos que a base proporciona não conduzem a temas correlacionados e conduzem a certas hierarquias superiores que às vezes nos fazem perder o significado semântico que nos interessa. Exemplo: a palavra “mulher” tão tem palavras abaixo de si, nem acima, porém, relaciona-se com a palavra “cônjuge” em mesmo nível, que por sua vez está abaixo do termo “direito de família”. O mesmo ocorre com a palavra homem. Ao procurar a palavra “mãe” ratifica-se o fato de que esta não está relacionada com mulher. Nem gravidez. Nem violência doméstica. Deu para perceber que a taxonomia não ia nos ajudar no sentido de formar grupos de palavras que representassem determinadas temáticas, certo? Assim, foi interessante conhecer o Tesauro mas resolvemos que faríamos a contagem das palavras-chaves constantes na indexação das proposições e faríamos a análise a partir daí. Trata-se de uma análise mais automática do que pensávamos e com menos riqueza semântica, mas é o que é possível ser feito.
Então, bastava ir ao XML, buscar as proposições e começar a trabalhar com as palavras-chaves para os gráficos nascerem… Contudo, descobrimos que a base de dados de que dispúnhamos não contava exatamente com o campo das indexações. Ok, avisamos isso a Centro de Informática da Câmara (CENIN), pedimos que essa base fosse completa e fomos atrás das biografias. Lá estavam elas, lindas, com fotos e histórias das pessoas que fizeram muito da nossa história. Procuramos pelo campo sexo e nada… Procuramos por gênero e nada… Parece trote de faculdade? Não, foi verdade mesmo. Esta base também tinha tudo menos os campos primários que precisávamos. Avisamos este fato também e novamente pedimos completude da base. A esta altura já estávamos na quinta-feira e já faláramos com o Claudio*, o Rodolfo* e o Carlos* do CENIN. Confesso que pressionamos mesmo os funcionários. Sim, esse é o nosso papel. Estamos numa maratona, numa imersão de programação na casa que felizmente se abriu para a cultura hacker. Nosso papel é fazer o máximo possível para que nossa presença aqui deixe alguma marca e abra espaço para alguma mudança. Não é nossa função passar inócuos, pois se assim o fosse, por que estaríamos aqui? Por que voltaríamos aqui? Ainda na saga dos dados é preciso dizer que sabemos que muitas vezes há vontade do corpo técnico em colaborar, há competência para isso. Mas é preciso de autorizações burocráticas cujo fundo é político.
E falando em política, destacado foi o contexto político que nos rodeou estes dias. Visitamos os plenários da Câmara e do Senado exatamente em 29/outubro/2013, quando nossa Constituição Federal fez 25 anos e cuja comemoração vai além disso per si e representa a comemoração do período democrático contínuo mais longo da história do nosso país. Foi uma sensação muito contraditória “comemorar” o aniversário de um quarto de século da Constituição Cidadã que veio brindar-nos com democracia e direito de expressão em dois plenários que continham as seguintes instruções a cidadãos(ãs) nas galerias: “proibido manifestar-se”. Além disso, só eu acho uma enorme contradição haver um crucifixo na parede atrás na mesa diretora das duas casas lesgislativas mesmo num Estado laico?
Ademais, existiram rodas de conversa com diversas pessoas que merecem narrativas. O presidente da casa Deputado Federal Henrique Eduardo Alves fez uma fala inicial e foi aberta a palavra aos presentes. O Pedro Markun, companheiro da Transparência Hacker, elogiou a iniciativa do Hackathon e abertura da casa, mas apontou que neste momento nossa presença aqui significa um certo “estado de exceção” e propôs até o estabelecimento de um HackerSpace dentro da própria casa para que a troca seja permanente. Como resposta o deputado, que está em seu 11º mandato, é um dos proprietários de uma afiliada da Rede Globo no Rio Grande do Norte e é presidente de um jornal local, elogiou a lucidez das colocações do Pedro e disse ter sido perseguido pelo “regime de exceção” estabelecido pela “revolução” (sic) de 1964 (!) Ao ser questionado sobre o Marco Civil da Internet e o adiamenteo de sua votação – prevista para esta semana – ele respondeu de forma bastante lisa, culpando o procedimento burocrático da casa, apontando a necessidade de revisão do regimento interno, etc. Também tivemos uma conversa com o pessoal do e-democracia que perdi um bocado por estar correndo outros locais da Câmara atrás das bases de dados. Houve a conversa com o Secretário-Geral da Mesa Adjunto Fernando Saboia Vieira que esclareceu muito sobre o regimento interno, sobre a prática política e sobre os fluxos precedimentais. Precebemos que o descolamento entre letra morta e realidade começa na casa de feitura de leis… O bate-papo com o Deputado Paulo Pimenta foi esperançoso, fez-nos acreditar que é possível haver um parlamentar que queira fazer do seu mandato um mandato aberto e transparente. Se isso vai ocorrer de fato, não se sabe, mas muito da política é intenção, ou pelo menos surge da intenção – temos fiapos de esperança.
Outras conversas, estas já não públicas e que merecem nota foi a com a Candyce Rocha da Secretaria da Mulher da Câmara e com o Mozart Vianna de Paiva. A Candyce veio conversar conosco por causa do nosso projeto, contou um pouco a história da Secretaria, apresentou as iniciativas e ouviu estusiasmada nosso projeto. A conversa com o Mozart contou com dois momentos: o primeiro em que as câmeras estavam ligadas e o segundo, com as câmeras desligadas. Enquanto havia a lente gravando, a atuação do Secretario Geral foi bastante performática, falando da Constituinte como se estivesse ali ajudando a nós, “crianças”, com um trabalho escolar. Inicialmente estávamos de um lado da mesa eu, Pedro da THacker e Daniela Silva facilitadora do Hackathon. Do outro lado da mesa estavam o Mozart, o Cristiano* (promotor do Hackathon) e o Rodolfo* (do CENIN). Ouvimos algumas histórias interessantes sobre a Constituição e tal, mas estávamos ali para conseguir um compromisso de abrir bases de dados. Rolou um momento ali que o Mozart disse “veja, se eu fosse seu pai…” – bem, no espírito de programadores(as) o lado de cá da mesa avaliou que dado que a hipótese é falsa (ele não é nosso pai), não seria preciso considerar a frase seguinte apontada pelo raciocínio logico causa-efeito. Fomos cavando o assunto perguntando da Lei de Acesso à Informação, fomos obtendo respostas de que deveríamos ser responsáveis com a informação – reflexo de um espírito um tanto ultrapassado de quem está nessa posição há mais de 20 anos. Quando chegamos no ponto, ele disse que não estava preparado para essa reunião e cercou-se de assessores: a chefe de gabinete Claudia Alarcão*, Leonardo* da área de informática e Débora* do Sileg. Conversas paralelas desenvolveram-se, foi dito por nós que há inconsistência entre as diferentes bases da casa, foi dito por eles que a ideia é ser transparente e deixar todos dados acessíveis, houve uma saída do Mozart para conversar com uma determinada liderança partidária em algum momento, houve discussão sobre presenças (sim há 3 tipos de presença na Câmara). Também ouvimos da chefe de gabinete que é melhor não liberar dado algum do que liberar dado sem alta qualidade… o que é dado de alta qualidade? Uma pena essa blindagem e inércia da SGM.
Outro fato que aconteceu no período que estávamos por aqui foi a Audiência Pública Ordinária da Comissão Especial destinada a proferir parecer à proposta de emenda à Constituição nº 479-A de 2010, do deputado Bala Rocha que acrescenta um inciso ao artigo 5º da Constituição Federal para incluir o acesso à Internet em alta velocidade entre os direitos fundamentais do cidadão. A sessão foi conduzida pelo relator deputado Amauri Teixeira. Havia vários convidados especialistas da sociedade civil que defendem um Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) decente mas que infelizmente não compareceram à sessão. Assim, como especialistas havia somente um professor da UnB, um representante das teles da Anatel e um representante do Ministério das Comunicações. Houve um certo consenso que acesso à internet deve ser um direito, mas cada qual pos suas questões sobre como viabilizar isso. Foi relevante a consideração de que se a internet for considerada um serviço essencial, pode ter impostos reduzidos (PIS/COFINS/e IPI) porém ainda passível de ICMS (menor). Deputado Izalci Lucas Ferreira fez a pertinente observação que Internet deve ser um serviço fornecido gratuitamente à população caso realmente tenhamos em vista usá-la para dar acesso equânime de oportunidades às pessoas. Concomitantemente n’outro plenário havia a discussão sobre o voto aberto para perda de mandato (PEC196/12) que não pude acompanhar.
Agora uma breve análise sobre o gênero nisso tudo também não poderia faltar. Para variar encontro-me no meio de muitos homens. De 50 hackers que aqui estão, somos apenas 3 mulheres. Na atual legislatura a porcentagem de deputados não chega a 9%. Descobri que a primeira mulher, Carlota Pereira de Queirós, só viria a ser deputada constituinte em 1933-1934. Descobri também que ela consta da base de dados que recebemos mas não está no site da Câmara (mais uma das inconsistências com que nos deparamos). Percebi que há muitas mulheres nas assessorias, na cozinha e na limpeza. Além disso numa das entrevistas que dei perguntaram-me sobre esse desbalanceamento e terminaram sugerindo que essa escassez de mulher poderia ser uma barreira, mas não para mim. Como não? Estou aqui com um projeto mais para por a pauta na roda de discussão exatamente porque é isso é uma barreira. É preciso entender que não é porque algumas de nós transpomos barreiras que elas não existem. Outro momento bastante delicado foi quando dei uma pressioanda por dados e ouvi “nossa como você é brava” seguido de “tudo bem, lá em casa sabe que quem manda é a minha mulher”, acrescido ainda de uma pergunta “você é da Parabíba?”. Espero que as pessoas que falaram isso leiam este relato e reflitam, pois me altou a presença de espírito de dizer-lhes: “moço, você foi machista”. Explico-me. É machismo recriminar, mesmo que no tom de piada, um comportamento que não seria encarado da mesma forma se viesse de um homem. É machismo atribuir o espaço natural do “domínio feminino” o lar, o espaço privado – o que só me faz pensar o quanto este projeo é fundamental, o quanto é importante desconstruir a naturalização do espaço público como masculino e do privado como feminino. E sobre a Paraíba, prefiro nem tecer maiores comentários acerca do preconceito que a frase que ouvi pode expressar.
Para concluir, estamos agora tentando virar algum gráfico na madrugada a partir das bases de dados que conseguimos integralmente e legível por máquina apenas na tarde da quinta-feira, 3º e último dia da maratona (temos que entregar tudo até 9h da sexta-feira). E não é que nos deparamos com um monte de palavras que não são partidos no campo destinado a partidos agora mesmo? Bem, saída será filtrar pela lista de partidos que temos e as proposições que não contiverem um partido no campo partido será descartada da análise, infelizmente.
Finalmente, quero parabenizar especialmente ao Cristiano Ferri e à Daniela Silva que ficaram muito tempo mesmo à nossa disposição e ajudando o máximo que podiam a gente a conseguir dados. Vale agradecer todos(as) funcionários(as) citados(as) acima e com um * ao lado do nome – talvez eles enfrentem todos os dias tudo isso que enfrentamos nesta semana. Queria sobretudo agradecer dois homens muito bacanas mesmo, Andrés e Diego, que toparam levar esse projeto à frente porque entendem que um mundo mais equânime é melhor para todas e todos nós!
Não posso deixar de destacar um ponto MUITO negativo do Hackathon como um TODO, foi a presença das câmeras, a imprensa, (inclusive a TV Câmera) não conseguiu entender que o foco do evento não eram eles. Eles não são a prioridade, eles não eram interlocutores, eles não eram sequer atores.
Eles possuem um papel importante, mas esse papel Não pode, de forma alguma, inviabilizar o evento e as pessoas envolvidas nas atividades.
No momento que deveria ter ocorrido uma conversa do Dep. Henrique Eduardo Alves, presidente da casa, com os presentes, a imprensa se postou num paredão (literal) entre os dois interlocutores (Dep. e Hackers), inviabilizando completamente o diálogo.
Em diversos outros diálogos entre “convidados” e os participantes do Hackathon o mesmo ocorreu.
Já no quarto e último dia, momento das apresentações, os câmeras teimaram em se postar com câmeras e tripés entre quem estava apresentando o projeto desenvolvido e os outros participantes. Isso tudo para poder filmar alguém digitando performaticamente para a câmera. Algo completamente sem sentido e sem o menor bom senso.
Fica a sugestão aos próximos promotores de hackathons e eventos que tomem cuidado com isso.
Ótimo relato, Haydée. Obrigado 🙂
Só faltou um link para o projeto de vocês. Fiquei curioso.
Projeto Gênero & Participação: http://radarparlamentar.polignu.org/genero/
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