Archive for abril, 2014

A polêmica pesquisa do IPEA

No final de março o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou a pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres”. A pesquisa de campo foi feita em 2013 com 3.810 entrevistados (33,5% homens e 66,5% mulheres) de todas as regiões do Brasil. A pesquisa (relatório disponível aqui) tinha como objetivo principal avaliar a percepção sobre a violência contra a mulher, assim, foi utilizado o Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS). Foi feita uma série de perguntas a respeito do tema, algumas mais diretas, outras não, utilizando escala Likert, o que caracteriza uma pesquisa qualitativa.

Parte dos resultados da pesquisa do IPEA, antes da errata.

 

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Uma foto da campanha viral #EuNãoMereçoSerEstuprada

A primeira versão dessa pesquisa indicava que cerca de 65% dos brasileiros concordavam (total ou parcialmente) com a frase “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Isso gerou grande reação e o debate tomou lugar na mídia tradicional e também nas redes sociais. Daí e devido à enorme capacidade viral que a internet proporciona, começou a pipocar a hashtag #EuNãoMereçoSerEstuprada, às vezes com o acréscimo de #NinguémMerece e frequentemente com fotos de mulheres de pouca ou nenhuma roupa ao fundo. Isso virou uma campanha, uma campanha que não foi bolada por nenhuma agência publicitária mega-milionária ou incitada por nenhum partido. É um eco de voz comum, que por muito tempo foi calada e que ainda tem medo de falar alto, de falar em público, do passeio público. Esse debate pegou fogo nas timelines de muitas pessoas nos últimos dias. Mobilizou jornalistas, esquentou conversas entre amigos e foi tempero amargo de jantares familiares.
A cultura do estupro, que existe, que sentimos todos os dias, estava mais uma vez comprovada em números. Digo mais uma vez, porque essa não é a primeira nem a última pesquisa sobre esse assunto que se indica condescendência social (de homens e mulheres) em relação à violência contra a mulher. Vale lembrar que violência pode ser psicológica, física, sexual e obstétrica, entre outras. Não posso deixar de citar o caso da mulher que foi obrigada a fazer uma cesárea com 40 semanas de gravidez (e não 42 como foi alegado pela médica). Por que é claro que a mãe deliberadamente ia colocar em risco a vida não só do bebê mas também sua depois de quase 9 meses de gestação!

Parte dos resultados da pesquisa do IPEA, antes da errata.

Parte dos resultados da pesquisa do IPEA, após da errata.

Voltando ao foco: pesquisa do IPEA. Hoje soltaram uma errata a respeito de dois gráficos que foram feitos de forma incorreta na primeira versão do relatório final. Dizia: “constata-se que a concordância parcial ou total foi bem maior com a primeira frase (65%) e bem menor com a segunda (26%). Com a inversão de resultados entre as duas questões, relatamos equivocadamente, na semana passada, resultados extremos para a concordância com a segunda frase, que, justamente por seu valor inesperado, recebeu maior destaque nos meios de comunicação e motivou amplas manifestações e debates na sociedade ao longo dos últimos dias”.

Chamada da matéria na Folha de São Paulo

Chamada da matéria na Folha de São Paulo

A Folha, ávida por manchetes bombásticas e aproveitando para surfar na onda do tema quente que ela própria não conseguira gerar/prever anuncia: “Pesquisa que indica apoio a ataques a mulher está errada, diz IPEA; só 26% concordam”. Entendo que 65% seja uma marca maior que 26% (quase o dobro). Daí a considerar “só” é um lapso que me diz que esses 26% devem ser mais mesmo na realidade… Vamos pensar os “só” 26% como pelo menos 1 em cada 4 pessoas concorda que “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Além disso, o título sugere que a pesquisa está errada, e não que esse dado específico esteja errado. Vamos olhar o lado positivo? O IPEA errou, seu erro suscitou um enorme debate acerca do assunto, honestamente se retratou. Já a Folha, ficou pianinho e apenas alterou o título depois de um auê a respeito do “só” (embora o hiperlink http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/04/1435877-pesquisa-que-indica-apoio-a-ataques-a-mulheres-esta-errada-diz-ipea-so-26-concordam.shtml continue o mesmo).

Demorei para chegar no ponto da metodologia porque acho o contexto e a repercussão gerada de extrema relevância. Aí, muitas críticas surgiram em relação ao método empregado. Vi críticas aqui e acolá basicamente sobre: amostragem, formulação das perguntas, ordem das perguntas. Eu não sou especialista nem na área de Direitos Humanos e nem em pesquisa qualitativa, mas queria deixar aqui a minha análise (afinal, o blog é meu e não respondo por instituição nenhuma aqui).
Bem, foi usado o modelo de regressão logística, o que implica que a variável dependente é qualitativa do tipo dummy (0 ou 1). A pesquisa atribuiu como 1 a quem concorda (total ou parcialmente com as afirmações) e 0 para os demais casos – ótimo! Neste modelo, as variáveis explicativas ou independentes deveriam ser métricas ou não métricas do tipo dummy, o que também ocorre. Eu só estranhei a forma de agrupamento para compor as dummies (p. 29 do relatório). Juntaram as regiões S e SE no marcador 1 e as demais no marcador 0. Não vou dizer que isso é errado, mas eu não faria isso. Eu colocaria (n-1) dummies para representar as regiões pois acho que esse agrupamento induz leitura S+SE versus regiões N, NE e CO.
Sobre a rotatividade das perguntas (o relatório se refere como “modo automático”) eu acho muito bom haver rotatividade aleatória porque a ordem das perguntas influencia as respostas em qualquer questionário. Então para diluir esse efeito a rotatividade de perguntas é sim uma boa estratégia. Sobre a representatividade da amostra: se por um lado a divisão da amostra é de 33,5% homens e de 66,5% mulheres, por outro lado, o relatório afirma que foi “utilizado o método de amostragem probabilística de modo a garantir uma margem de erro de 5% a um nível de significância de 95% para o Brasil e para as cinco grandes regiões”. Deixo essa dúvida no ar, e acho que merece algum esclarecimento por parte do IPEA.
Por fim, sobre a formulação das perguntas. Alguns especialista dizem que são subjetivas, outros, que deveriam ser perguntas mais diretas. Mas em pesquisa qualitativa sabemos que perguntas muito diretas podem induzir a um comportamento por parte do(a) respondente de dar a resposta que sabe que será mais aceita/bem vista socialmente. Ao mesmo tempo, devem ser evitadas ao máximo perguntas que induzem a resposta. Nesse ponto queria ouvir críticas mais consistentes à formulação das questões para além do dizer que “atacadas” é um termo genérico para dizer estuprada. Sim, atacada é mais amplo que estuprada e talvez isso tenha sido intencional da pesquisa. Alguém que é “encoxada” no Metrô é atacada sim, assim como alguém que é violada, bêbada, numa festa.

Mais uma foto da campanha viral #EuNãoMereçoSerEstuprada

Mais uma foto da campanha viral #EuNãoMereçoSerEstuprada

Aqui já entro noutra discussão que figura de fundo… por que é tão importante para algumas pessoas discernir tão precisamente o que é um estupro? Porque se alguém “só” passou a mão, não é estupro. Se “só” beijou à força, não é estupro. Se “só” fez um cumshot surprise, também não é estupro. Então, discernindo bem que “uma coisa é uma coisa” e “outra coisa é outra coisa” não se corre o risco de confundi-las, certo? Na realidade, o que se faz ao encaixotar e rotular as coisas dessa maneira é que as distanciamos, entre si e de nós. Dificulta-se o olhar sistêmico que leva a entender que são atitudes relacionadas, atitudes que corroboram para a cultura do estupro por tirar da mulher a autonomia sobre seu próprio corpo.

Um último ponto que gostaria de tocar é a necessidade de abertura de dados e também de educação para nossa autonomia na lida e leitura desses dados. Aqui estão disponibilizados os microdados anonimizados e aqui o dicionário da pesquisa do IPEA. Queria elogiar o fato de se disponibilizar a planilha com microdados e, ao mesmo tempo, fazer a crítica construtiva de dizer que precisamos avançar e disponibilizar dados de interesse público como dado aberto (pdf e xls não são dados abertos). Garantido o acesso livre aos dados, precisamos saber mexer com esses dados. Precisamos de um mínimo de noção matemática e estatística não na faculdade de jornalismo (ok, lá está precisando muito atualmente), mas nas escolas de ensino fundamental e médio, públicas e particulares. Entender o que se lê, não apenas em palavras, mas em números, gráficos e tabelas é fundamental para o exercício da nossa cidadania. Nesse sentido, será organizado um Hackday na Casa de Lua em muito breve. Para pitacar sobre dia deste Hackday, clique aqui e, mais importante, vá.

Para finalizar, uma saída digna, embora tardia, foi a do IPEA em soltar uma errata da pesquisa. Uma resposta que nada constrói foi ” só” a primeira chamada da Folha de São Paulo sobre a errata. Agora, uma postura madura de tod@s nós é debater criticamente a pesquisa, mas não a deslegitimar. Deixo, assim, as seguintes questões:  se toda pesquisa pode ser metodologicamente questionada sempre (amostragem da pesquisa IBOPE, critérios da OD do Metrô, etc.) por que tanta ênfase em questionar justamente essa? Se fossem os 26% divulgados inicialmente, haveríamos discutido o quão absurdo é alguém, uma única pessoa, pensar que “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”?